Blog do MAG https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br Thu, 30 May 2019 23:56:15 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Queermuseu volta no Rio para dar ‘basta a onda de obscurantismo’, diz curador https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/04/03/queermuseu-volta-no-rio-para-dar-basta-a-onda-de-obscurantismo-diz-curador/ https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/04/03/queermuseu-volta-no-rio-para-dar-basta-a-onda-de-obscurantismo-diz-curador/#respond Tue, 03 Apr 2018 12:43:35 +0000 https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/files/2018/04/11f0f1d6f8660e0609af40bb6b136df96ba9a1afcf8275f1804d3071d903761f_59b86e0a7ec83-320x213.jpg http://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/?p=567 Alvo de ataques e controvérsias, a  polêmica exposição  Queermuseu vai ser remontada no Rio, depois de ter sido fechada pelo Santander Cultural no ano  passado, em Porto Alegre.

O curador da mostra, Gaudêncio Fidélis, conversou com o Blog sobre as circunstâncias do veto, as pressões, as campanhas nas redes sociais, seu depoimento na CPI e outros temas que marcaram o episódio.  Para Gaudêncio, o Santander cometeu, em sua decisão de interromper a mostra, um “crime contra a arte e a cultura brasileira”.

A remontagem da Queermuseu vai acontecer na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, provavelmente em junho. Além da exposição, está prevista a realização de um seminário com diversas mesas de debates. Para bancar o evento foi promovida uma campanha de levantamento de fundos, por meio de doações, leilão de obras oferecidas por artistas e um show de Caetano Veloso –que aconteceu um dia depois do assassinato da vereadora Marielle Franco. Foram  arrecadados R$ 1.075.926  –um recorde em iniciativas desse tipo no país.

Blog – Quando você organizou a Queermuseu, no Santander de Porto Alegre, imaginou que a mostra sofreria tantas pressões? Como você viu a decisão da instituição de ceder às manifestações e fechar a exposição?

Gaudêncio Fidélis – Eu sempre tive plena consciência da força artística e política desta exposição. Desde que eu dirigi o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), entre  2011 e 14, e também durante a 10a Bienal do Mercosul, da qual fui curador, eu já observava manifestações de ataques de setores obscurantistas em direção à arte.

Poucas pessoas que eu lembre estavam prestando atenção e considerando a gravidade das manifestações. Mas de fato seria inimaginável que uma exposição como a Queermuseu fosse atacada como foi e que o Santander, seu patrocinador e realizador, fosse fechá-la abruptamente. É o banco que consuma esse crime contra a arte e a cultura brasileira. Sem a ação e conivência do Santander isso não teria acontecido.

Vale lembrar que as pressões realmente tomaram corpo quando o Santander fechou a exposição e condenou moralmente as obras através da nota que emitiu. Tal atitude reforçou a narrativa difamatória que estava sendo construída e deu legitimidade a ela diante da opinião pública. Para se manifestar a favor de uma exposição em que a própria instituição que a promove condena, e que se encontra fechada, ou seja, impossibilitada de averiguação pelo público, é preciso estar muito próximo dela, ter pleno conhecimento dos fatos, muita clareza sobre o avanço dessa onda obscurantista – ou, de outra forma, esperar que os fatos sejam esclarecidos. Caso contrário só resta mesmo os reacionários que odeiam a arte e a cultura e têm princípios incompatíveis com a democracia.

O Santander Cultural perdeu sua legitimidade como instituição. Usou o prestígio da classe artística durante esses 17 anos de sua existência para se instituir, e a atacou quando teria que ser defendida. Trata-se de uma instituição censora, que deveria ter suas portas fechadas, porque não podemos ser condescendentes com esse violento ataque e rompimento com os princípios mais básicos que uma instituição cultural deve manter.

Blog – Até que ponto manifestações de repúdio a uma mostra ou a outras produções culturais são aceitáveis? Há casos também, no Brasil e em outros países, de tentativas de setores de esquerda de impedir palestras e exibições de filmes e obras. Qual o limite da liberdade de expressão? A arte tem um estatuto diferenciado nesse contexto?

Gaudêncio – Manifestações de repúdio não são aceitáveis, mesmo quando a arte não obtenha consenso. O território de existência da arte é aquele do debate e do diálogo. Muito se fala sobre setores da esquerda que tentam cometer atos de censura, mas todas as vezes que lembro foram episódios baseados em alguma visão equivocada da interpretação de direitos aparentemente violados  –e não casos extremos como o fechamento de uma exposição de 264 obras de 85 artistas. De fato a esquerda cometeu diversos erros na sua interpretação da dinâmica artística e cultural –e a direita cometeu atrocidades muitas vezes.

Mas, no caso, temos uma ação concatenada e vasta dirigida contra a Queermuseu, da qual fazem parte outros ataques, como aqueles direcionados às religiões de matriz africana, ao carnaval, ao universo acadêmico. Não podemos confundir isso com casos isolados|. Ações de censura isoladas são graves, mas é preciso diferenciá-las de um plano dentro do qual a Queermuseu foi inserida.

Todos estão aprendendo com o processo desencadeado pela censura à Queermuseu –e esperemos que os setores mais progressistas da sociedade também aprendam. Não deve haver limite para a liberdade da expressão artística, à exceção de postulações de ódio ou racismo, por exemplo, como está previsto na Constituição. A arte não seria arte se promovesse crimes. Esse é um pressuposto elementar do objeto artístico, que é universal e todos que trabalham com arte sabem disso: se a arte ingressa no terreno do crime, imediatamente é destituída de sua condição artística, pois isso tem influência nas prerrogativas artísticas e estéticas que a constituem.

Portanto, sim, temos que fazer uma diferenciação entre a liberdade de expressão artística e a liberdade de expressão em geral. Uma não tem prioridade sobre a outra, mas a segunda envolve territórios mais vastos que não estão assegurados pelas prerrogativas que designam o que seja um objeto de arte ou não. 

Blog – Quais foram os momentos mais difíceis pelos quais você passou nesses meses?

Gaudêncio – Talvez tenha sido convencer as pessoas mais próximas que a estratégia de enfrentamento a esses ataques não seria ficar calado, como se tudo fosse, eventualmente passar. Eu sempre tive essa consciência, de que não iria passar e que nenhum setor da sociedade escaparia ‘as consequências desses ataques. Também foi difícil fazer com que muitas pessoas entendessem que o caso da Queermuseu está relacionado a um crescimento do fundamentalismo no país, mesmo porque ele adquire aqui uma engenharia complexa, pois une a ultradireita, alguns setores do capital financeiro, o neopentecostalismo, e grupos fascistas como o MBL (Movimento Brasil Livre), além de outros.

Cada um com interesses diversos, mas no centro dessa união estão a direita e a ultradireita juntamente com o fundamentalismo religioso. Precisam um do outro, pois o populismo da “teologia da prosperidade” dos neopentecostais é indispensável para essa equação política. O esforço físico e mental que fiz e continuo fazendo para dialogar incessantemente com parcelas da população e tentar esclarecer a opinião pública representou um desafio extraordinário nesses últimos tempos.

Blog – A ideia de convocar um curador de arte para depor na CPI dos ”Maus Tratos” do Senado  pareceu um despropósito, uma medida sem sentido –a não ser o de chamar atenção e servir de palanque para o senador Magno Malta (PR). Alguns sugeriram que você não falasse, mas você acabou depondo e saiu-se, segundo as avaliações gerais, bem. Como foi esse processo?   

Gaudêncio – A maneira como a CPI dos Maus Tratos, destinada inicialmente a investigar “maus tratos em crianças e adolescentes”, foi transformada em um instrumento de criminalização da produção artística e dos artistas (e, pior ainda, com motivos obscuros e eleitoreiros) é uma coisa muito grave. Como tudo, aliás, que o senador Magno Malta faz.

Felizmente houve um entendimento por parte da maioria da comunidade artística e cultural da gravidade do que estava acontecendo. Um processo de resistência e articulação política foi colocado em curso para que se barrasse a condução coercitiva no âmbito do Legislativo e da CPI. Se esse instrumento fosse adotado, não há dúvida que parlamentares inescrupulosos passariam a usá-lo indiscriminadamente para fins obscuros. Essa articulação envolveu a mobilização de grandes parcelas da sociedade, de parlamentares, juristas e lideranças de diversas áreas.

Talvez muitos ainda não entendam o que realmente aconteceu ali, mas barramos uma das maiores investidas obscurantistas que este país já viu depois da ditadura em direção à arte e à cultura. As implicações seriam trágicas para todos. Este é um caso em que houve uma disputa sobre a estratégia  que eu deveria adotar na abordagem do depoimento da CPI, mas vencida esta etapa, creio que é evidente que falar para a sociedade brasileira, e não para o senador Magno Malta, foi a escolha correta.

Blog – A montagem da Queermuseu, que será reaberta nos próximos meses no Parque Laje, no Rio, retoma uma história que foi interrompida com o endosso explícito do prefeito carioca, Marcelo Crivella. Qual o significado dessa iniciativa?

Gaudêncio – A intervenção do prefeito Marcelo Crivella entrará para a história como uma das mais desprezíveis investidas feitas por um administrador público contra a arte. Ela foi uma atitude covarde e oportunista, pois o prefeito não só mentiu para a sociedade brasileira e para a população do Rio de Janeiro, como utilizou a máquina pública ao fazê-lo.

Vale dizer que ele só faz isso porque tem foro privilegiado. Do contrário duvido que o fizesse pois seria processado por suas calúnias. Além disso, ele faz uma associação perniciosa e vil entre um dos aspectos mais relevantes da paisagem da cidade do Rio de Janeiro, que é o mar, e um das mais importantes instituições brasileiras, o Museu de Arte do Rio (MAR). Por tudo isso e muito mais ele não é digno dos votos que recebeu da população que supostamente deveria representar. Ao proibição de montar a mostra no MAR foi a  segunda censura imposta à Queermuseu.

Reabrir a exposição é portanto uma forma de dar um basta a esta onda de obscurantismo que avança sobre o país. Pretendemos também criar um grande fórum de debates paralelamente à exposição para discutir todas estas questões que envolvem a exposição e que são extremamente relevantes, especialmente no ano em que o Brasil realiza aquela que poderá ser a mais importante eleição do período pós-ditadura.

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Execução de Marielle deixa no ar sinal de que novos atentados podem ocorrer https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/03/17/execucao-de-marielle-deixa-no-ar-sinal-de-que-novos-atentados-podem-acontecer/ https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/03/17/execucao-de-marielle-deixa-no-ar-sinal-de-que-novos-atentados-podem-acontecer/#respond Sat, 17 Mar 2018 19:58:09 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/?p=526 A morte da vereadora carioca Marielle Franco deixa no ar um sinal de que a intervenção no Rio poderá enfrentar novas ações de retaliação ousadas por parte do crime organizado e de setores da estrutura pública a ele associados –a confirmar-se que o assassinato tenha partido, como tudo sugere, dessa área.

Não esqueçamos o que aconteceu em São Paulo, em 2006, quando uma série de ataques coordenados pelo Primeiro Comando da Capital (facção que desde então só se expandiu) propagou pânico,  acuou a população e intimidou o poder público.

Tudo começou entre a noite do dia 12 e a tarde do dia 13 de maio, breve período em que se registraram mais de 60 atentados contra policiais, guarda civis e agentes prisionais, com um saldo de 30 mortos e 25 feridos.

Numa onda de terror, os atos prosseguiram nos dias seguintes. A polícia, então, reagiu de maneira brutal. Entre 12 e 21 de maio, contou-se um saldo de 564 mortos por arma de fogo no Estado –59 eram agentes públicos, 505, civis.

Nos últimos 12 anos, depois da carnificina paulista, uma série de outros ataques ocorreu pelo país –e talvez não seja exagero classificar  essas ações como uma modalidade de narcoterrorismo.

No Rio, o assassinato em série de policiais militares, a que se assiste nos últimos tempos, é uma clara ação intimidatória, que lembra a atuação de grupos guerrilheiros de outros tempos –e também de outros países.

Agora, a matéria escura que se oculta nas instituições e nos subterrâneos do crime produz sem hesitação, sob a intervenção das Forças Armadas, um atentado bombástico. Elimina-se uma representante eleita do povo que militava por direitos e denunciava abusos e ilegalidades de policiais. A mensagem é clara –como destacou Alvaro Costa e Silva em coluna publicada na Folha neste sábado (17/3): “Não mexam com a gente, ninguém está a salvo”.

O crime ocorreu no momento em que o presidente Michel Temer, em mais um de seus pronunciamentos infelizes, especulava diante de uma plateia de empresários paulistas sobre a possibilidade de sua “jogada de mestre” ser encerrada em setembro, dando tempo para, quem sabe, votar a reforma da Previdência.

Os tiros no Estácio devem ter mostrado ao mestre que sua jogada pode se tornar muito mais complicada do que presumia.

Sim, é possível obter algum efeito afastando este ou aquele agente corrupto e reprimindo quadrilhas do tráfico. Ninguém, aliás, deveria espernear contra uma redução de índices de violência obtida dentro de parâmetros aceitáveis de atuação das Forças Armadas.

Mas não é disso que se trata.

O disputado varejo da venda de drogas nos morros e favelas cariocas não é onde se concentra o grande poder e o grande dinheiro do tráfico. Para fazer alguma coisa mais efetiva, ainda que reduzida ao âmbito estadual, as Forças Armadas precisariam pelo menos coordenar uma ação de inteligência que levasse à prisão de figuras da política, do Judiciário, das polícias e do meio empresarial associadas ao crime organizado.

É de imaginar que trabalhem em algo parecido. De qualquer forma, uma ofensiva dessa ordem –ou mesmo menos ambiciosa– dificilmente será realizada sem a reação dos potenciais atingidos. E estes, como já ficou claro na morte da vereadora e em ataques como aqueles de São Paulo, não têm limites.

Uma diferença digna de nota, no caso de Marielle,  foi a presença de milhares nas ruas, em manifestações que se assemelharam àquelas que vemos em cidades europeias e americanas em repúdio a atentados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Vídeo mostra trecho de fala de Marielle em reunião na casa de Paula Lavigne com artistas e intelectuais https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/03/16/video-mostra-trecho-de-fala-de-marielle-em-reuniao-na-casa-de-paula-lavigne-com-artistas-e-intelectuais/ https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/03/16/video-mostra-trecho-de-fala-de-marielle-em-reuniao-na-casa-de-paula-lavigne-com-artistas-e-intelectuais/#respond Fri, 16 Mar 2018 18:26:17 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/?p=515

A primeira e, infelizmente, a última vez que vi Marielle Franco foi há menos de um mês, no dia 22 de fevereiro, numa reunião organizada pela ativista e empresária da área de cultura Paula Lavigne, em seu apartamento no Rio. O tema do encontro era a intervenção federal, decretada poucos dias antes.

Compareceram artistas, intelectuais, políticos, líderes e militantes comunitários. Marielle, com sua força vital, falou sobre a expeirência na favela da Maré, onde nasceu; lembrou  a presença de blindados militares no cotidiano das pessoas; referiu-se a  seu mandato popular como vereadora (“estou como vereadora, mas eu sou da Maré”,  diz ela no início do vídeo acima); e fez comentários sobre reuniões e debates na comunidade para instituir uma polícia comunitária e assegurar o direito dos favelados à segurança pública.

Ao mencionar a conjuntura política que se descortinava com a intervenção federal na segurança e com as disputas eleitorais de outubro, ela previa “um processo de acirramento”.

Fica aqui o registro em vídeo de um breve trecho de seu depoimento,  que marcou a reunião e arrancou aplausos dos presentes.

#MarielleFranco #JustiçaParaMarielle

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Feminismo dominante desqualifica divergência e vê sexo hétero como trauma, diz Francisco Bosco https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/01/16/feminismo-desqualifica-divergencia-e-ve-sexo-hetero-como-trauma-diz-francisco-bosco/ https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/2018/01/16/feminismo-desqualifica-divergencia-e-ve-sexo-hetero-como-trauma-diz-francisco-bosco/#respond Tue, 16 Jan 2018 04:00:21 +0000 https://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/files/2018/01/Francisco-Bosco-180x120.jpg http://blogdomag.blogfolha.uol.com.br/?p=244 O feminismo dominante, caudatário das feministas radicais dos anos 80, as “radfems”, desclassifica o dissenso e considera que “o desejo da mulher está sempre coagido pela estrutura patriarcal” –e por isso mesmo entende as relações heterossexuais como “constitutivamente violentas”.

A opinião é de Francisco Bosco, 41, autor de “A Vítima Tem Sempre Razão?” (Todavia, 2017). Para o ensaísta, o manifesto de Catherine Deneuve e suas colegas francesas acerta no essencial ao criticar o autoritarismo que dominaria a cena feminista e ao identificar uma dimensão de puritanismo nas “radfems”.

No livro, que tem provocado controvérsias, Bosco propõe uma interpretação crítica do debate contemporâneo que inunda as redes sociais com questões identitárias, intransigências e extremismos.

Na entrevista que se segue, feita por e-mail, ele mapeia as discussões suscitadas  pelas manifestações do Globo de Ouro e das francesas,  comenta outros debates identitários e  diz que a esquerda deveria “defender categoricamente a liberdade de expressão”.

“É melhor apostar no esclarecimento do que duplicar os mecanismos obscurantistas que estão tentando se apoderar da sociedade brasileira”, afirma.

Blog – O protesto do Globo de Ouro e a carta de Catherine Deneuve e suas colegas francesas reiteram que o processo de combate ao assédio e à supremacia masculina por parte dos movimentos feministas não é monolítico, encerrando visões distintas sobre a sexualidade, a real autonomia das mulheres e o papel dos homens. Mesmo considerando que as duas manifestações midiáticas acumulam camadas de marketing, de estrelismo e algum oportunismo, elas poderiam servir de ponto de partida para um mapeamento  das perspectivas em cena? O que cada uma dessas manifestações nos diz?

Francisco Bosco – Sim, há duas perspectivas feministas diferentes em jogo. Antes de apresentá-las, permita-me entretanto questionar o termo que você usou: “reiteram”. Infelizmente, houve algo de raro no manifesto das 100 francesas, que foi o fato de um contradiscurso feminista ter sido capaz de fissurar o discurso dominante.

Esse feminismo dominante tem feito de tudo para desqualificar qualquer tipo de dissenso. E, na verdade, continuou fazendo diante do manifesto. Ele logo o reduziu à sua dimensão infeliz, aquela parte que trata da “liberdade de importunar”, que realmente mais confunde do que esclarece a zona cinzenta entre assédio e interações heterossexuais aceitáveis, e que é tão importante tentar iluminar.

Mas não; o manifesto não é apenas sobre isso, e nem principalmente sobre isso. Ele é antes de tudo uma defesa de alguns direitos fundamentais de qualquer indivíduo. Antes de tudo, o direito das mulheres de não serem estupradas, coagidas ou assediadas sexualmente (assédio aqui considerado como pressão sexual em ambientes de hierarquia profissional). Mas o sentido principal da carta me parece ser repudiar que, em nome disso, se estabeleçam métodos injustos e premissas para lá de problemáticas.

É verdadeira a crítica das francesas ao autoritarismo do movimento feminista dominante (o que esperar de uma organização chamada “Balance ton PORC”?). É verdadeira a identificação de uma dimensão de puritanismo (para as “radfems”, as feministas radicais, relações heterossexuais são constitutivamente violentas). É verdadeira a crítica ao desinteresse em separar casos evidentes de assédio sexual e acusações baseadas em premissas discutíveis (isso é o que Elizabeth Badinter, num livro de 15 anos atrás, chamava de “lógica do amálgama”). É verdadeira a crítica à justiça expeditiva, por sua vez baseada no que chamo de “sinédoque moral”, que consiste em reduzir todo um indivíduo a um traço, falta ou até a uma suspeita (o que não vai sem uma boa dose de hipocrisia, pois os julgadores sabem que não passariam pelo crivo do mesmo teste moral).

Portanto, há sim duas perspectivas feministas em jogo, e eu diria que a maior diferença entre elas é que a dominante (essa do #MeToo e seus congêneres) considera legítimo que se cometam violações a direitos fundamentais, em nome da correção de injustiças históricas contra as mulheres –e a outra perspectiva não o admite. Não é difícil compreender como se chegou a isso.

De fato, como se não bastassem todas as violências cometidas contra elas, a palavra das mulheres tem sido desqualificada, deslegitimada, fazendo-as sofrer uma segunda violência quando não podem denunciar os crimes que sofrem, ou sendo desclassificadas quando os denunciam.

A vítima nunca teve razão. E por isso o feminismo dominante resolveu inverter o jogo de poder: agora a vítima tem sempre razão. Inverteu-se a injustiça, voltando-a agora contra os homens. Não se faz justiça sem tensionar o universal e o particular, isto é, sem examinar os casos concretos, sob os princípios elementares do devido processo legal. É isso o que Margaret Atwood –considerada uma “bad feminist” pelo feminismo dominante– acaba de lembrar, em um artigo magnífico (“Am I a bad Feminist?”).

A outra questão fundamental que separa os dois feminismos tem a ver com a autoimagem da mulher. Para o feminismo de Atwood, Deneuve, Kipnis, Badinter, Maria Rita Kehl etc., a mulher é sempre agente, ativa, responsável pelo seu desejo. Para o feminismo dominante, existe uma ambiguidade entre essa imagem e aquela de uma mulher frágil, vítima incondicional do patriarcado, que é a autoimagem das “radfems” americanas dos anos 1980, cujas ideias têm se difundido de forma impressionante.

Para Dworkin, MacKinnon e companhia, o patriarcado é um sistema tão opressor que, nele, a mulher não tem condições legítimas de autonomia para manifestar seu consentimento ou repúdio em interações heterossexuais. É sob essa perspectiva que uma série de denúncias para lá de problemáticas têm sido feitas. Denúncias contra homens que transaram consentidamente com mulheres, mas as mulheres “no fundo” não o desejavam, e entretanto não puderam dizê-lo com todas as letras, “porque o patriarcado…”, “porque faz parte da construção de gênero feminino a submissão da mulher ao desejo masculino” etc.

 As denúncias por “relacionamento abusivo” (que pressupõem uma mulher frágil o suficiente para ser manipulada psicologicamente, já que isso não envolve violência ou diferença hierárquica) têm nesse ideário sua origem. Assim como as denúncias contra homens “poderosos” que usam seu prestígio social para seduzir mulheres, fora de ambientes profissionais, e por livre e “espontânea”  vontade das mulheres  (para as “radfems”, na realidade, o desejo da mulher está sempre coagido pela estrutura patriarcal, por isso nunca pode ser espontâneo; a relação heterossexual adquire assim uma dimensão constitutivamente violenta; o sexo é traumático)

 Há inúmeros casos como esses, no Brasil e nos EUA. O que eles têm em comum é que a denúncia é imediatamente acatada (“a vítima tem sempre razão”) e os homens são imediatamente punidos, de alguma forma. Vejam, a propósito, a denúncia que acaba de sofrer o comediante Aziz Ansari. Ou o magnífico conto “Cat Person” (cuja autora, entretanto, abraça a perspectiva “radfem” que ora apresento) 

Blog – Essa perspectiva das feministas radicais não vai contra as próprias conquistas femininas no campo dos direitos, da moral e do comportamento?

Bosco – Sem dúvida há uma tensão entre essa formulação e as conquistas que você aponta. O melhor livro que conheço a respeito é o da filósofa francesa Elizabeth Badinter, “Fausse Route”, que recomendo enfaticamente

Blog – Embora em algumas áreas da sociedade mulheres exerçam direitos e tenham atingido um grau já considerável de afirmação e autonomia, há o argumento de que essa situação é para elites, já que no campo do que a esquerda chama de classes dominadas, o quadro é brutal. Isso por si deslegitimaria a atitude “uma cantada não dói” de mulheres de classe média ou não, que lidam de maneira mais fluente com essas situações?  

Bosco – A meu ver essa questão tem ao menos duas abordagens.

Em primeiro lugar, me parece forçado querer reduzir as diferenças entre os discursos feministas a uma questão de classe social. Oprah Winfrey, que acabou virando a musa do #MeToo, é uma liberal que foi a favor do bombardeio americano ao Iraque, num primeiro momento.

 Ser a favor da justiça expeditiva contra homens é então um traço de defesa dos setores desfavorecidos mais importante que o apoio ao massacre de um país pobre, que incluiu assassinatos de milhares de civis? Nesse aspecto da questão, as coisas não me parecem tão simples. E é um aspecto importante, porque está associado à lógica que chamo de “sinédoque moral”, e que consiste em tomar todo um indivíduo por apenas um traço, uma falta ou até mesmo uma suspeita, e condená-lo de forma sumária (não apenas socialmente, mas às vezes profissionalmente também) por isso.

Ora, essa lógica, como já disse, não vai sem uma boa dose de hipocrisia, porque as pessoas que se engajam nela sabem perfeitamente que não resistiriam ao mesmo teste.

Repito a pergunta: qual a falta mais grave, alisar as costas de uma mulher de modo oportunista enquanto a consola (comportamento sem dúvida inadequado, mas que valeu a Garrison Keillor uma demissão sumária da rádio onde ele trabalhava há 50 anos), ou ser uma liderança civil, como Oprah, e legitimar o bombardeio ao Iraque (ainda que mais tarde tenha mudado de posição)?

Além disso, acho que há nisso tudo uma dimensão categórica, universal. Estupro é estupro, assédio sexual é assédio sexual, independentemente de perspectiva de classe. E mesmo em relação à zona cinzenta entre violências evidentes e as abordagens aceitáveis, me parece que dá pra pensar também de forma categórica.

Basicamente, penso que o consentimento deve ser a linha demarcatória fundamental entre o aceitável e o inaceitável. Consentimento, entretanto, só é moralmente legítimo se houver autonomia de ambas as partes envolvidas. Por isso assédio sexual –tal como tipificado na legislação brasileira: pressão sexual em ambientes profissionais hierarquizados– é crime: porque uma das partes não está dotada de autonomia.

Mas aqui retorna o problema de que já tratamos, sobre a perspectiva das “radfems”. Minha posição pessoal é de que as mulheres devem sempre ser responsáveis por seu consentimento. “No means no” (não significa não), e cabe ao homem acatar (qualquer insistência do homem, após ter sido desautorizado por um não, é uma forma de assédio). Mas a ausência de um não manifesto nunca poderá ser tomada como motivo para denúncias de assédio.

Isto posto, tendo a ver com olhos pouco preconceituosos as propostas de exigência de consentimento explícito, como já existem nos EUA e na Suécia. Elas soam esdrúxulas, mas são as únicas capazes de resolver o problema, de outro modo insolúvel, das acusações de estupro e violência que não se pode comprovar (por danos físicos ou testemunhas).

Nesses casos, que são a maioria, uma das partes tende a ser prejudicada (historicamente foi a mulher; agora é o homem). O que não é aceitável é esse limbo em que estamos, onde o consentimento explícito ainda não foi socialmente pactuado, mas algumas mulheres o exigem dos homens.

Blog – É sempre difícil e vista como problemática a opinião de homens no debate feminista, assim como a de brancos no debate sobre discriminação racial. Não faz muito, Dana Schutz, uma artista branca que retratou o assassinato de Emmett Till numa pintura, teve seu quadro retirado da Bienal do Museu Whitney de Nova York (sob a “justificativa” de que surgira um vazamento de água na parede) após protestos de ativistas negros. Tratou-se, afinal, de uma censura. Há uma tentativa de interdição de vozes e de estabelecer uma espécie de monopólio do debate identitário? 

Bosco – Veja, em primeiro lugar, penso a partir da perspectiva kantiana, para a qual todo sujeito está submetido à tensão entre a defesa do interesse próprio e a obediência aos imperativos morais, que por definição são os que trazem em si o interesse do outro. Assim, reduzir a intervenção pública de um sujeito à sua posição social –como se aquela necessariamente devesse espelhar essa– fere a própria dimensão moral da vida de cada um. Isso simplesmente não é verdade.

Além disso, trata-se de um debate relacional, que envolve interesses das categorias envolvidas. De novo, não acredito que se possa reduzir tudo a essas categorias (mulheres contra homens, brancos contra negros etc.). Mas, se se quiser utilizá-las, é preciso observar que, então, as mulheres também têm uma perspectiva parcial, não neutra.

Sobre a sua questão, propriamente, permita-me uma última resposta mais longa. As estratégias de interdição dos discursos de ódio, chamadas de “no platform”, surgiram na esquerda identitária anglo-saxã com uma razão justa: impedir a difusão de ideias que pretendem revogar o encaminhamento moderno das sociedades.

Por moderno designo o indeterminado, o não tradicional, a ausência de fundamento positivo do mundo. Moderno é o mundo que aceita todas as formas de vida, pois não crê em um fundamento metafísico (os monoteísmos, por excelência) a determinar a origem transcendental de um conjunto de normatividades (a heterossexualidade, a cisgeneridade, o que for).

 Os chamados discursos de ódio (“hate speechs”) são discursos antimodernos, reacionários, restauradores da tradição. Impedir que isso aconteça tem, paradoxalmente, um sentido libertário: garantir que qualquer possibilidade seja igualmente aceita.

Um primeiro problema é que a direita se apropriou dessas práticas. O caso da passagem de Judith Butler pelo Brasil foi exemplar disso. É óbvio que a equivalência é apenas formal. O sentido é inverso: a direita pretende proibir a liberdade. Não há paradoxo, não há legitimidade, é puro arbítrio dogmático. E, entretanto, isso causa um problema estratégico, pois a direita pode defender a legitimidade de suas práticas como sendo práticas também da esquerda.

Mas há um outro nível ainda mais problemático. Não é assim tão óbvio determinar o que são discursos de ódio, quais são os discursos que devem ser evitados. Temos visto a esquerda tentar interditar discursos da própria esquerda, quando esses últimos não estão alinhados às diretrizes dos que, então, tentam proibi-lo.

Além do caso que você menciona, aqui no Brasil já vimos episódios como o do humorista Rafucko, que sofreu um protesto de ativistas do movimento negro por conta de obras artísticas suas tematizarem questões raciais. Nos EUA, feministas da universidade de Northwestern tentaram impedir a circulação de um artigo da também feminista Laura Kipnis, porque ela contestava as práticas feministas no seu campus.

Tudo isso traz à tona uma vexata quaestio: quem pode determinar que discursos devem ser interditados?

Tudo somado, minha opinião é de que a esquerda deveria defender categoricamente a liberdade de expressão neste momento. É melhor apostar no esclarecimento do que duplicar os mecanismos obscurantistas que estão tentando se apoderar da sociedade brasileira.

NA FOTO ao alto, Francisco Bosco. Fotógrafo: Ricardo Borges/Folhapress

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