Os 80 tiros e a volta dos porões
O homicídio do músico Evaldo Rosa dos Santos, no domingo, no Rio de Janeiro, não comporta tergiversações: trata-se de ação brutal perpetrada por militares do Exército Brasileiro que fere a Constituição e as normas mais elementares do Estado de Direito.
Impressiona a desenvoltura demonstrada pelo grupo fardado, que depois de descarregar 80 disparos –80!– num automóvel ocupado por pessoas pacíficas teria debochado da mulher da vítima, acompanhada do filho de 7 anos, do pai, também atingido, e de uma amiga.
O episódio é também alarmante porque escalões superiores tentaram iludir a opinião pública com uma nota mentirosa, na qual se apresentava uma história da Carochinha sobre o ocorrido.
Não é um caso isolado a envolver o Exército, que já vinha sendo indevidamente acionado nos últimos anos para desempenhar papel de polícia num contexto de guerra aberta contra quadrilhas de traficantes do varejo das drogas.
A famigerada intervenção decretada por Michel Temer, no Rio, com o intuito, entre outros, de desviar a atenção de suas atividades criminosas (pelas quais finalmente deverá pagar), parece ter sido um marco nesse processo. Com a proteção de uma legislação que entrega à Justiça Militar o julgamento de militares acusados de matar civis, o arbítrio começou a pressionar as barragens.
Há relatos –de autoridades sérias que trabalham na defesa de direitos– de atos cometidos por militares que fazem lembrar os piores momentos de extremistas da caserna.
Muitos brasileiros orgulham-se de ter alçado ao Planalto um candidato identificado com os porões da ditadura. Bolsonaro nunca escondeu quem são seus heróis. É um apologista das armas e da tortura. E isso não é bravata.
O fato de que o “mau militar”, assim citado por Geisel, venha sendo monitorado no governo por um grupo de generais menos insensatos por caminhos tortos ecoa o jogo de atritos e cumplicidades entre as linhas militares de décadas atrás –os moderados, os “bolsões radicais porém sinceros”, os torturadores etc.
O crime contra Evaldo encena a volta dos porões nessa espécie de pós-democracia, à luz do dia, sem receio de punição, sem temor de transgredir regras legais e normas básicas de convívio civilizado. Se já não bastassem os desvios cometidos pelas franjas corruptas e incontroláveis das polícias, vemos uma instituição com a tradição e o prestígio do Exército ser exposta por incursões como essas, que semeiam a selvageria.
Sinal dos tempos, o espetáculo da estupidez merece o aplauso de uma horda de obcecados com a caça aos comunistas e com ataques contra homossexuais, pretos ou feministas. Gente que quer matar “bandido”. E temos assistido a um perigoso recrudescimento da violência por parte do Estado, pessoas e grupos paralelos.
O que está em curso deveria nos preocupar. Enquanto setores da elite não desviam os olhos da agenda liberal, as bases da convivência social vão sendo corroídas pela escalada de uma direita das cavernas, de caninos aguçados, tacape e tablets nas mãos.
Nada garante que os erros serão reaproveitados numa imaginária “curva de aprendizado” e que as tentativas menos exitosas servirão para indicar os trajetos certos. Há sempre indivíduos, grupos e nações que simplesmente fracassam.
NA FOTO AO ALTO – O músico Evaldo Rosa dos Santos, morto por militares