Sem mandante, caso Marielle pode ser ainda mais grave, diz especialista

Marcos Augusto Gonçalves

Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), um dos principais institutos voltados para o estudo da violência no país, disse ao blog que a hipótese de não ter havido um mandante maior com motivação específica no assassinato da vereadora Marielle Franco pode revelar uma situação ainda mais grave. O Brasil teria dado um novo salto “num poço ainda mais profundo de incivilidade e desconstrução de nossa legitimidade democrática”, já que  milicianos por iniciativa própria estariam se sentindo em condições de decidir “quem vive e quem morre e o que é certo e o que é errado em termos políticos e ideológicos”.

Sérgio de Lima também comentou o recuo do ministro da Justiça, Sergio Moro, da nomeação da cientista política Illona Szabó para o Conselho Nacional de Política Criminal.  Ele lembra que no mesmo dia do afastamento de Illona, Bolsonaro enquadrou três eixos de poder que dão sustentação ao seu governo, segmentos militares, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o da Justiça, Sergio Moro. “Porém, a repercussão da exoneração de Ilona foi muito maior do que a calculada”.

A prisão dos suspeitos de matar a vereadora Marielle Franco é um passo numa investigação que se arrasta inexplicavelmente (ou explicavelmente) há um ano. Como você vê os desdobramentos em busca dos mandantes?

Não temos todos elementos para afirmar, mas o caso ainda parece longe de ser resolvido. Abre-se agora uma outra frente de investigação sobre a motivação, para responder à questão de por que esse crime tão bárbaro do ponto de vista da institucionalidade política aconteceu.  Na coletiva do Ministério Público foi dito que a motivação foi ódio. É preciso investigar. Se não existir um mandante com uma motivação determinada pode ser até mais sério do que imaginávamos, porque vai mostrando que os milicianos,  seja o Escritório do Crime, seja o Ronnie Lessa e todo grupo que dá sustentação  a esse tipo de atividade no Rio de Janeiro, se sentiram autorizados a matar uma política que pensa diferente. Se for fato que não houve mandante, o Brasil deu um salto num poço ainda mais profundo de incivilidade e desconstrução de nossa legitimidade democrática.  É  um grupo que se apropriou do Rio de Janeiro, que acha que pode definir quem vive e quem morre e acha que tem direito de decidir o que é certo e o que é errado em termos políticos e ideológicos. É gravissimo, mas isso a gente ainda precisa confirmar.

A eleição de políticos como o presidente Bolsonaro e os governadores do Rio e de São Paulo, que têm dado sinais explícitos de apoio ao confronto e ao uso da violência pelas polícias, já está provocando efeitos? O que se pode esperar dessa linha de política pública?
Sem dúvida, estamos vivenciando, nos últimos meses, o fortalecimento de discursos gritando por mais liberdade para que os policiais da linha de frente decidam o que, quando e como uma ação violenta será ou não legítima em termos legais. Eu comento mais sobre isso ano meu blog aqui na Folha, o Faces da Violência.

Diante de tais discursos, temos vários exemplos de policiais saindo do controle e se excedendo no uso da violência. Tenho reiterado a importância das polícias para a segurança pública no Brasil e, até por isso, falo tranquilamente que se continuarmos a fortalecer posições políticas que hoje defendem a violência policial, estamos, no limite, enfraquecendo as próprias polícias. Defender a agenda de direitos da Constituição Federal não nos faz inimigos das polícias, muito pelo contrário. Se hoje há uma forte adesão de policiais e juízes à agenda do governo Bolsonaro, isso é um direito e uma liberdade individual. Mas, ao aceitar que opiniões individuais alinhadas ao momento sejam tomadas como institucionais, estaremos esgarçando os mecanismos de controle e chocando o ovo da serpente. Hoje segmentos significativos dos policiais concordam com medidas extralegais e violentas, emulando a ideia autoritária e perversa da urgência da eliminação dos inimigos do povo; amanhã, quando um oficial ou delegado pensar diferente, terá sua ordem acatada, será eliminado ou será expurgado?

Precisamos criticar a facilidade com que lideranças políticas utilizam discursos e homenagens para louvar a violência policial e milicianos, buscando auferir ganhos eleitorais em cima do pânico da população, provocado pela insegurança. Essa prática política, cada vez mais comum no nosso país, deve ser condenada com veemência para que não haja mais vítimas. Do contrário, teremos muito mais mortes e violência para lamentar nos próximos anos.

O recuo do ministro da Justiça, Sergio Moro, no caso do convite a Illona Szabó para ser suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, escancarou as fortes pressões ideológicas e os lobbies que atuam dentro do governo. Como você viu a atuação de Moro no caso?  O vice-presidente Hamilton Mourão criticou a decisão defendendo a ideia de que é preciso sentar à mesa com pessoas que têm posições divergentes. Você ainda acha isso possível no atual governo?

De antemão, é importante contextualizarmos o que ocorreu na quinta feira, dia 28/02. Eu já disse publicamente, mas, a meu ver, o que ocorreu naquela data foi que o presidente Jair Bolsonaro, após dois meses se recuperando da cirurgia derivada da facada, sentou, efetivamente, na cadeira de presidente. Naquele mesmo dia ele recebeu Juan Guaidó com honras de Chefe de Estado, contrariando segmentos militares; ele abrandou a proposta de reforma da Previdência ao aceitar uma idade menor para mulheres e, com isso, mostrou que mesmo o ministro Paulo Guedes não tem a última palavra; e, por fim, exigiu a exoneração da Ilona para mostrar para Sergio Moro que o governo segue uma linha ideológica única. Em um mesmo dia, Bolsonaro “enquadrou” três eixos de poder que dão sustentação ao seu governo. E ele fez isso escolhendo 3 situações importantes o suficiente para terem visibilidade, mas não centrais nas agendas desses três eixos, evitando rompimentos ou fricções mais sérias. Porém, a repercussão da exoneração de Ilona foi muito maior do que a calculada e penso que, até por isso, o governo viu que precisava reduzir impactos e danos, justificando as palavas do vice-presidente, Hamilton Mourão.

Dito isso, fica claro que a agenda de segurança pública passou longe dos cálculos políticos do Governo Bolsonaro. E eu tenho clareza de que, desse modo, não faz nenhum sentido cair na armadilha de aceitar ser oposição política e/ou ficar na posição de oponente, como as redes sociais tanto tentaram nos rotular a partir dos posts de Benê Barbosa e Eduardo Bolsonaro. O compromisso do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com a agenda de evidências e de transparência continuou e continua intacto e foi ele, em grande medida,  responsável pelo meu pedido de saída do Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.

O caso Ilona foi a gota d’água de um quadro de enfraquecimento das instâncias colegiadas que já vinha avançando com o envio do “pacote anticrime” sem apresentação ao Conselho. E também com a não resposta ao meu pedido de acesso aos estudos de impacto do pacote, como determina o decreto de governança pública, e com a não convocação do Conselho, entre outros sinais. Minha saída está diretamente ligada à agenda da segurança pública. E é em torno dela que o FBSP continuará trabalhando. Não nos cabe o papel de player político para além desta agenda e não iremos avançar sinais. É hora de saber separar o jogo macro e o jogo da nossa área. Neste último, continuaremos incisivos na defesa de uma nova segurança pública, baseada no que prevê nossa Constituição. O fundamental é ouvir a todos e dialogar. Mas com princípios claros, sem medo de sermos o que somos ou das redes de ódio da internet.

Embora seja considerado “técnico” por alguns, o ministro da Justiça também tem abraçado propostas que não se justificam diante de pesquisas, dados e estudos, como a facilitação da posse de arma e o aumento da impunidade em casos de morte causada por policiais. Como você vê as medidas que Moro pretende implantar?

O Ministro Sergio Moro é egresso do sistema de Justiça Criminal, com mais de 25 anos de experiência como juiz federal. Ele tem uma grande experiência profissional e, diante do protagonismo que assumiu na Operação Lava-Jato, era natural ele se sentir tentado a ocupar posições que lhe dessem a oportunidade de colocar em prática sua visão de mundo. Isso é positivo e precisa ser respeitado. Isso, porém, não o faz mais capaz do que diversos outros operadores e estudiosos. Como político e não mais como juiz, o papel do Ministro deve ser o de construir consensos e não o de determinar um caminho. E, nesse movimento, o governo Bolsonaro não ajuda em nada por seu perfil sectário e marcadamente ideológico.

O Brasil de Bolsonaro retomou um falso antagonismo entre operadores e especialistas, com críticas fortes àqueles vinculados às ciências sociais. Mas, efetivamente, muitas das propostas feitas nesses últimos 30 anos não foram colocadas em prática, já que boa parte da legislação infra-constitucional que regula a área é anterior à Constituição de 1988. Dito de outra forma, o colapso da segurança é algo que tem sido construído faz mais de 75 anos, desde os anos 1940, com os Códigos Penal e de Processo Penal. E, portanto, os operadores não têm a exclusividade da “verdade”; e a sociedade civil e a Universidade têm toda a legitimidade de fazer parte do debate e da busca de soluções.

Não somos melhores ou piores do que ninguém. E, ao dizer isso, as medidas do pacote anticrime são medidas, de um lado, pautadas pela ideologia do presidente, que como vimos agora com a prisão dos suspeitos de serem os pistoleiros responsáveis pela morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, valorizam a violência policial e a ideia de policiais como combatentes. Por outro lado, as medidas visam ajustes na legislação penal e processual penal, mas nada falam de direito administrativo e da governança de um sistema que não induz à integração e estimula disputas entre Poderes e érgãos de Estado (o Judiciário tem um sistema de dados prisionais; o Executivo tem outro. A Polícia Civil considera esclarecimento uma coisa; o MP outra, e assim por diante). O Pacote não foi construído, aparentemente, com base em estudos de impacto e estimativa de custos. Claro que a experiência do Ministro e de seus assessores ajuda a pensar que muitas das medidas podem ser eficientes, mas hoje, como não são públicos os estudos prévios, não sabemos qual será o efeito prático das medidas. É um pacote que dialoga mais com o desejo de que dê certo do que com a certeza das evidências.

 

FOTO AO ALTO – Um dos acusados de matar Marielle Franco, o ex-PM Élcio Queiroz ao lado do presidente Jair Bolsonaro – Reprodução/Facebook